quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Seleção Multicultural Alemã e a "Naturalização da Ignorância" na Mídia

É impressionante como a mídia brasileira desconhece o futebol e a sociedade alemã. Para muitos jornalistas a Alemanha convocou para essa Copa uma verdadeira "Legião Estrangeira" através de um "Exército de Naturalizados". Pessoalmente acho que o que foi "naturalizado" e formalizado por muitos foi o racismo e a ignorância na mídia.

Para um imbecil como Galvão Bueno, por exemplo, qualquer cidadão que não tenha olhos azuis e os “arianos” cabelos loiros na seleção alemã é um "naturalizado".

O que define um cidadão alemão? Ou melhor, o que define um cidadão?

Vamos aos fatos, para tentarmos entender um pouco a atual realidade alemã .
Aqui 23% da população é de imigrantes ou de descendentes de imigrantes, o que é chamado pelas autoridades alemãs de "Migrationshintergrund".

Só de descendência turca são 14,2 % da população...

A sociedade alemã hoje é Multicultural. Eu não vou nem dissertar sobre se isso é bom ou ruim, para não quebrar o teclado de raiva aqui. Mas hoje isso é um fato para quem mora na Alemanha.

E isso se reflete na seleção alemã em vários casos.

O caso de Klose e Podolski , eles são Germânicos da Silésia pelo velho Jus sanguinis, devido as comunidades alemães que vivem hoje em territórios que pertencem politicamente a Polônia. Existem até alguns movimentos e historiadores daqui que defendem que a "Schlesien" é Alemanha.

Até o começo do século passado , 75% da população da Silésia falava apenas o alemão. Isso vem desde do antigo Heiliges Römisches Reich (O Sacro Império Romano-Germânico). Em 1742 a Silésia foi absorvida pela Prússia e com a Unificação Alemã a Silésia virou parte do Império Alemão. Só com o fim da segunda guerra que a população alemã começou a ser realojada da Silésia e recolonizada por colonos Poloneses. Algo em termos históricos ainda muito recente.

Portanto esse chororô de que Klose/Podolski não são alemães, é pura falta de conhecimento da História e Cultura Alemã.

O caso de Özil, eu acho um dos mais graves e revela o quão racista é a mídia brasileira. Ele nasceu em Gelsenkirchen na Renânia e foi revelado pelo Schalke 04, mas é filho de imigrantes Turcos. E Como 14,2 % da população alemã ele tem um "Türkisch Migrationshintergrund". Mas é só ele tocar na bola que os profissionais-comentaristas-formadores-de-opinião já vão o chamar de “Turco”, mas aí eu começo a desconfiar que esses nobres formadores de opinião nem saibam onde fica Gelsenkirchen num mapa. Özil nasceu, engatinhou, aprendeu a andar/comer/cagar/vomitar, estudou, viveu e jogou unicamente e exclusivamente na Alemanha. Nunca morou na Turquia! Mas só porque é filho de imigrantes já é qualificado pela mídia como Turco.

Além do Özil, temos Boateng, Aogo, Mario Gomez e Khedira aos quais todos nasceram na Alemanha! São apenas filhos de imigrantes... Marko Marin chegou na Alemanha ainda Bebê, com a família refugiada da Bósnia.

Cacau é o único “naturalizado” ao pé da letra jurídica, mas começou jogando na 5° divisão daqui e só depois de 10 anos em Terras-Germanis, ele adquiriu a nacionalidade alemã, como os milhares de Afrodeutsche ou schwarze Deutsche que podemos ver em qualquer grande cidade alemã. O cara começou aqui há mais de uma década jogando literalmente como amador, entrando na Alemanha como "músico" de uma banda brasileira e depois começou a jogar na liga amadora. Jogou até no time B do Nürnberg que é praticamente os juniores, para só depois ser promovido para o time A.

A Seleção alemã deve refletir a sociedade alemã! E hoje nem a sociedade, nem a seleção é apenas composta pela "nobre" raça ariana loira de olhos azuis.

Mas os racistas latem "Onde ficar a Ideologia e Tradição Alemã com esses imigrantes ?"

Ora bolas ... O que seria a "Ideologia Alemã"? Ou o que seria a "Tradição Alemã"?

Em termos de ideologia podemos aqui ir do Idealismo Puro de Hegel ao Materialismo de um Ernst Thälmann. Podemos sair do revisionismo social-democrata meia-bunda de um Karl Kautsky ao Marxismo Clássico de uma Rosa Luxemburg. A Ideologia Alemã pode ir do ultra-nacionalismo Nazi ao Internacionalismo proletário de um Walter Ulbricht. No final da equação todos foram Alemães.

A "Tradição Alemã" é algo completamente heterogêneo e complexo que pode ir das Lederhosen ao sul na Bavária até aos dialetos Frísios no extremo norte. Eu moro em Hannover e aqui se fala o tradicional Hochdeutsch (Alto Alemão),mas muitas vezes quando vou ver jogo em Twistringen que fica a menos de 200km daqui, a população local já fala um outro dialeto chamado Plattdüütsch, uma mistura das línguas Alemã e Holandesa. E só como muita reza eu começo a entender alguma coisa.

Eu defendo a "Alemanha para quem nela Trabalha", um velho conceito da antiga Spartakusbund e depois adotado pela Alemanha Oriental. Acho que a Alemanha pertence a todos os trabalhadores que residem em território alemão. E devem ser tratados como iguais, algo que não vemos no dia-a-dia aqui. Nas ultimas eleições aqui em Hannover, 20% da população não teve direito a voto porque não era "cidadã". Isso que é um verdadeiro absurdo!!

Nacionalidade não vem com Ius sanguinis e um direito divino medieval hereditário. Nacionalidade assim como qualquer outro direito não cai do céu através de uma intervenção divina. Nacionalidade se conquista, principalmente através do trabalho.
Do que adianta ter um pedaço de papel em mãos, e nunca ter vivido, trabalhado e nem falado a língua da Terra, que aquele mísero documento que para apenas burocratas tenta representar alguma coisa.

Por Ius sanguinis somos todos africanos, afinal o primeiro Australopithecus africanus e Homo sapiens veio de lá!

Saudades do velho Eric Cantona e sua atitude de “Fuck your National Identity!”.

7 comentários:

  1. Belo texto Fred, bastante esclarecedor sobre as peculiaridades etnico-históricas do povo germânico. Não vou me deter sobre o processo de multiculturalização, não só da alemanha, mas da europa e do mundo como um todo, que não vejo com nenhum entusiasmo, muito pelo contrário. Mas discordo veementemente do argumento que tenta classificar a identidade cultural de um povo a partir do eixo "trabalho". Minha identidade como Pernambucano, por exemplo independe de qualquer recorte de classe, mas funda-se em princípios históricos, em princípios institucionais, simbólicos e etc... A supremacia da esfera econômica sobre as demais faz jus a mesma premissa que embala a cultura e a vende como produto com o belo nome de sociedade multicultural globalizada, apenas mais uma face da mundialização e de sua planificação cultural de massas. Claro, todos os estratos sociais têm possuem um "ethos" subcultural próprio, mas isso é um efeito de perspectiva do próprio caráter estratificado da sociedade, inerente a mesma, não um indício de que a categoria "trabalho" seja o determinante cultural.

    Abraço, Drak.

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  2. Drak,

    Nunca esqueça que as classes não foram extintas no processo "Identitário".

    Um barão Italiano, não viveu a realidade de um lavrador italiano de café... mesmo que ambos sejam considerados "imigrantes"

    Sou um pouco cético em relação a esse discurso da "Identidade nacional", muitas vezes fede a fascismo e a racismo, como o NPD aqui e a EDL na Inglaterra.

    Nesse ponto ainda sou um fã do velho Eric Cantona...

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  3. http://fundamentosgeografia.blogspot.com/2010/04/aula-6-o-conceito-de-cultura-e-sua.html

    Nessa aula (do link ai em cima) discutimos as relações culturais entre a sociedade e o espaço com que interagem.....vale a pena dar uma olhada nos slides....

    muito bom o blog acompanho ele já a algum tempo, parabéns para o colaboradores

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  4. Muito bom o post, mas acho que a FIFA irá impor sanções mais rígidas quanto a jogadores "naturalizados", o que é uma pena, pois isso só vem a prejudicar o esporte.

    ROGER

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  5. belo post!
    mas q drama!
    qlqr lugar do mundo é multicultural com seus cidadãos de diversas etnias/ascendências/etc. uns mais, outros, talvez, menos. como o brasil.

    de vez em quando, é necessário um tanto de jogo de cintura e bom-senso/senso-de-humor para não levar ao pé da letra algum comentário.

    ;-)

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  6. Texto muito esclarecedor.. Também acredito que o conceito de cidadania nada mais é que um ser humano que desenvolve suas atividades produtivas num determinado espaço nacional. Quanto ao preconceito, é típico de ignorantes que preferem não conhecer as realidades antes de se posicionar sobre..

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  7. Texto muito esclarecedor.. Também acredito que o conceito de cidadania nada mais é que um ser humano que desenvolve suas atividades produtivas num determinado espaço nacional. Quanto ao preconceito, é típico de ignorantes que preferem não conhecer as realidades antes de se posicionar sobre..

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