*uma versão reduzida deste artigo foi publicada no OutrasPalavras.net, onde agora tenho uma coluna com o mesmo tema do TorcidaGanhaJogo.blogspot.com, confira: http://www.outraspalavras.net/2011/04/28/o-triste-futebol-da-era-ronaldo/
Em fevereiro de 2011, um dos maiores jogadores da história do futebol mundial anunciou a sua aposentadoria. Como jogador. Ronaldo Luis Nazário de Lima antes mesmo de pendurar as chuteiras já havia revelado ao mundo os seus planos assim que deixasse de atuar nos gramados.
O que já se via de Ronaldo àquela altura era uma estrela que havia se tornado um grande empresário do mundo da bola enquanto ainda era atuava em campo. Inaugurou no Brasil um modelo inédito de parceria atleta-clube, o qual o próprio classifica como “a saída para os clubes brasileiros”.
Ronaldo pode ser considerado um marco de uma nova era no futebol, na qual os jogadores se tornam mega-estrelas, tendo status semelhantes a grandes artistas do show business da Industria Cultural. Coincidiu a sua explosão como grande jogador, que encantava milhões de torcedores em todo o mundo, com a nova ordem do futebol, cada vez mais mercantilizado, gerido por Federações que buscavam a todo custo adaptar-se a um modelo de empresa tendo participações em lucros exorbitantes e abusando do seu caráter de “direito privado”.
Ao voltar para o Brasil, quase uma estrela decadente, já sem apresentar o belo futebol que o consagrou, Ronaldo encontrou o terreno perfeito para seus planos. Clubes endividados, um futebol pra lá de deficitário, dentro e fora das quatro linhas e uma Confederação corrupta, tratada como um feudo pelo seu mandatário. Realidade que não via, por exemplo, na Europa, onde não mais encontrava espaço como jogador e já não gozava do mesmo respeito de outrora.
Não foi a toa que antes de escolher o clube mais adequado aos seus interesses – leia-se, fechar o melhor contrato – Ronaldo vagou pelo Brasil correndo atrás de contatos. Esboçou sua entrada no Flamengo, clube de maior torcida do país, fazendo entrevistas emocionadas em rede nacional, aparecendo em jogos do time, vibrando junto com a torcida que exaltava como a “mais bonita do mundo”. O que se viu, no entanto, foi Ronaldo acertando com o Corinthians, clube rival, e também de grande torcida, que foi o que lhe garantiu as melhores condições de negócio.
Ronaldo chega então ao Corinthians como o grande momento do futebol brasileiro em 2009. Por mais que se desconfiasse das suas condições físicas e técnicas naquele momento, o jogador conseguiu atrair um inédito patrocínio de 18 milhões de reais, acordo firmado com Batavo.
Não demorou muito e os resultados, de certa forma inesperados, vieram dentro de campo com a conquista do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil. É verdade que o Corinthians reforçou o elenco a ponto de garantir a independência do seu futebol diante do Fenômeno, mas as suas participações foram fundamentais também dentro do campo. Fora dele, os números se mostravam mais do que positivos: a arrecadação do Corinthians, entre patrocínios e publicidade, saltou de 24,7 milhões de reais em 2008 para 49 milhões em 2009.
O que ficava obscuro para a torcida do Corinthians, jornalistas e estudiosos do futebol em geral, era a participação real do jogador nesses lucros exorbitantes que a diretoria do clube, através do malicioso Andrés Sanchez, afirmava se concretizar. O que ficou em cheque e passou a ser o mote de muitos críticos da relação Ronaldo-Timão, foi a dificuldade em discernir quem dependia mais do outro.
A situação ficou insustentável a partir do começo de 2010. O Corinthians fecha um contrato bianual com a Hypermarcas no valor de 41 milhões de reais, sendo desse montante a assustadora fatia de 10 milhões para o jogador. Com a eliminação trágica do Timão na Taça Libertadores da América, torneio que ainda é o sonho de consumo da torcida alvi-negra, os valores se tornaram ainda mais questionáveis. Assim como o futebol de Ronaldo.
Ao longo de 2010, Ronaldo atuou com a camisa do Corinthians em apenas 19 ocasiões, incluindo o campeonato estadual, a próprio Libertadores e o Campeonato Brasileiro. Marcou apenas 8 gols, a sua principal função. Em cálculos simples, o clube pagou mais de 850 mil reais por jogo disputado. Mesmo jogando tão pouco, o fato de ainda ser jogador do clube lhe garantia contratos anuais com a Nike no valor de 1 milhão de dólares; com a Claro em 1,5 milhões, mesmo valor firmado com a AmBev; a participação de 80% dos 8 milhões destinados aos calções e ombro da camisa pela Hypermarcas; e por fim, um contrato com a Vale em 3,5 milhões só para uso da sua imagem no mercado chinês.
Ao mesmo tempo em que ganhava tanto, chegando à cifra impressionante de 29,7 milhões ao longo dos 21 meses com a camisa do Timão, a torcida organizava diversos protestos contra o alto valor dos ingressos, outrora justificados pela presença da estrela que não mais aparecia em campo. Em determinados jogos, o torcedor comum era obrigado a desembolsar 80 reais, o dobro do valor cobrado na maioria dos estádios da Série A do Brasil. Um sinal de que os argumentos que sustentavam a estadia de Ronaldo no clube já não mais faziam efeito. Sem jogar, o clube virou um misto de spa, agência de negócios e vitrine para jogador.
Acabado o triste ano do Centenário sem títulos do Corinthians, o ano de 2011 se iniciava com a dúvida sobre a aposentadoria do Fenômeno. Ainda havia uma Libertadores a ser disputada, talvez a forma de fechar com chave-de-ouro a sua carreira. O resultado foi a vergonhosa eliminação na fase preliminar do torneio para o modesto Tolima, trazendo uma imensa crise ao clube.
Agora sim, Ronaldo podia dar fim à sua carreira de jogador, passando a explorar o futebol em proveito próprio fora das quatro linhas. Algo que já estava desenhado desde o início de 2009, pouco depois de estrear no Corinthians, como revelou ele próprio em entrevista à revista Istoé Dinheiro em Setembro de 2010. Segundo Ronaldo, já estava em andamento a formação de sua empresa, a 9INE, uma sociedade com Sergio Amado e Marcos Buaiz.
Apenas a título de informação, Sergio Amado é o representante maior do grupo WPP no Brasil, gigante grupo econômico de Martin Sorrel, que faturou, apenas no primeiro semestre de 2010, o montante de 6,8 bilhões de dólares. O segundo parceiro, Marcos Buaiz, é o jovem herdeiro do grupo capixaba Buaiz que tem investimentos em áreas diversas como lazer e Shoppings Centers.
Os planos de Ronaldo com a 9INE é assessorar a carreira de jovens jogadores que se mostram potenciais estrelas. Usa a sua história como exemplo: um talento raro com pouco preparo mental para esse mundo selvagem que é o do futebol-negócio. Com uma fortuna avaliada em 250 milhões de dólares, Ronaldo revelou a intenção de explorar o mercado de jogadores também, afirmando ser um “negócio atraente” no qual “você compra dez jogadores e, se um der certo, já paga os outros nove” (sic).
Não bastassem a sua carteira de ações preenchida com nomes como Petrobras e Vale, a participação de 8% na rede de academias A!BodyTech, sociedade que tem nomes como João Paulo Diniz, herdeiro de Abílio Diniz, e do ex-banqueiro Luiz Urquiza; e até a propriedade do prédio onde funciona a Faculdade Estácio de Sá, a qual lhe garante percentuais nas matriculas dos alunos; Ronaldo prevê a atuação da 9INE na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpiadas de 2016, a qual já foi convidado para ser “embaixador”.
Ronaldo deixa de jogar futebol hoje, mas deixa para trás o seu legado. O que se verá daqui para frente com maior freqüência no Brasil é o modelo de parceria atleta-clube. Não mais como um jogador que é subordinado ao clube, empregado, e por isso alguém que deve satisfações à torcida que carrega as cores a qual ele foi destinado a defender. Como já começa a se configurar com a vinda de Ronaldinho Gaúcho ao Flamengo no início de 2011, o que se enxerga é a divisão clara entre o jogador-trabalhador e o jogador-empresa, aquele municiado de uma estrutura maior, de um status construído pela sua qualidade, mas também por uma gama de empresários capazes de articular esse tipo de negócio.
Ronaldo é hoje um tipo ideal para muitos jogadores brasileiros. Não muito diferente da “vida real” que supostamente existe fora do mundo mágico do futebol, o que se sabe é que a realidade do jogador comum é extremamente cruel, delegando a pouquíssimos o status conquistado pelo Fenômeno. Dados recentes apontam que 96% dos profissionais do futebol no Brasil – que são aqueles que fazem com que a bola não pare de rolar – recebem entre dois e três salários mínimos. Apenas 3% dos jogadores que atuam no país recebem mais do que 10 mil reais mensais. Uma realidade que se reverbera pelo resto do mundo, sofrendo alterações de acordo com as especificidades locais de cada país.
Ao passo que vemos essa realidade nefasta com jovens jogadores, que como o próprio Ronaldo apontou, são descartados no caso de não vingar - já que ainda assim compensariam financeiramente, caracterizando muito claramente uma exploração infantil do trabalho – não param de surgir empresas que esticam os seus tentáculos sobre rentável mundo do futebol-negócio. Essas que agem de modo a deturpar o principal sentido do futebol, que é o próprio jogo em si, em prol do seu negócio atacam principalmente os torcedores.
O mundo do futebol não está descasado da realidade social na qual vivemos. A apropriação privada dos bens coletivos, como o futebol, entendido como parte da nossa cultura, traz os mesmos efeitos negativos que visualizamos quando outros aspectos da nossa vida são privatizados. Sejam eles bens naturais, sejam os direitos coletivos que outrora já tivemos: a elitização, a higienização, a esterilização, o acesso seletivo definido pelo aporte financeiro, são os problemas que os torcedores, verdadeiros construtores do futebol enfrentam hoje e precisarão enfrentar nos próximos anos.
*Irlan Simões é estudante de Comunicação Social e torcedor do Esporte Clube Vitória. Atua no Movimento Somos Mais Vitória, na Associação Nacional dos Torcedores, na Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social e acha que o futebol deve ser jogador pela ala esquerda.